A atual discussão sobre a necessidade de o Estado brasileiro compatibilizar despesas com receitas (ajuste fiscal) é antiga e recorrente na história econômica mundial. Quando não bem situada, e dada a própria complexidade do tema, pode ensejar equivocadas interpretações. Alguns associam ajuste fiscal com conservadorismo neoliberal. Será? Há lógica econômica nele? Convido a leitor a uma breve reflexão.
Imaginem um simplificado orçamento governamental. Do lado das despesas três itens principais: gastos gerais (bens, serviços e salários), dispêndios com programas sociais e subsídios, e o pagamento de juros e correções monetária e cambial pelos empréstimos que o governo contrai ao gastar mais do que arrecada. Do lado das receitas, o recolhimento de tributos, as emissões de títulos, e as emissões de moeda. Ou seja, se o governo quiser aumentar suas despesas, ele precisa aumentar tributos, vender títulos da dívida pública, ou emitir moeda. No caso da venda de títulos, o governo tem que pagar juros e correções para ter seus papéis aceitos, dado que os interessados não cedem sua poupança por patriotismo.
O volume total desses títulos constitui a chamada dívida pública. Já a tentadora emissão de moeda, que poderia dispensar a venda desses títulos, costuma trazer fortes impactos inflacionários, gerando, em muitos casos, hiperinflações, o que colocou, com o passar do tempo e o maior protagonismo dos bancos centrais, essa alternativa em desuso. Cabe aqui destacar que a inflação, ao diminuir o poder de compra das pessoas, é considerada uma espécie de tributo (imposto inflacionário). Creio que essas considerações permitem ao leitor entender que se o Estado deseja gastar mais, ele só pode fazê-lo tomando emprestada a poupança do cidadão (venda de títulos) ou cobrando mais impostos (os tributos tradicionais ou o imposto inflacionário caso optasse por emitir moeda, gerando inflação).
Todos os governos costumam ter déficit nas suas contas e ao emitir títulos da dívida para financiá-lo acumulam, ao longo dos anos, uma dívida pública sob a qual incidem os juros e correções acima citados. Isto não significa dizer que todos sejam iguais diante dos seus credores internos e externos. Governos de países emissores de moeda aceita internacionalmente, com adequado perfil e composição da dívida, histórico de bom pagador, economia diversificada e em crescimento, empresas inovadoras, e sistemas bancários adequadamente capitalizados despertam baixa desconfiança. Além desses fatores, dá-se muita importância à capacidade dos governos gerarem superávit primário nas suas contas com relação ao PIB do país. Ele ocorre quando a arrecadação tributária supera os gastos gerais, sociais e com subsídios. Ou seja, a geração de superávit primário pressupõe a capacidade de o Estado cortar gastos (excluindo juros e correções) e/ou elevar tributos. Com ele, o governo gera recursos para pagar os juros e correções a quem, ao comprar seus títulos, lhe emprestou dinheiro, e reduz ou estabiliza a dívida pública com relação ao PIB. Quando o superávit primário não é suficiente para cobrir tais pagamentos diz-se que o governo teve um déficit público nominal.
Muito bem, só existe essa alternativa para solucionar desequilíbrios orçamentários? Não. Todo país é soberano para adotar decisões unilaterais como repudiar a dívida pública e o pagamento acordado de juros e correções. Em outras palavras, dar um calote. O problema é que desrespeitar a propriedade privada e os contratos, considerados pilares do capitalismo, envolve um alto risco político, algo que faz com que vários países descartem essa possibilidade. Eliminada essa alternativa, restaria então perseguir o superávit primário. Quais despesas devem ser cortadas, como garantir a qualidade desses cortes, e quais tributos precisam ser criados ou elevados? Novamente, será uma decisão política.
Feitas essas considerações gerais, é hora de dirigir o foco para as contas públicas brasileiras? O superávit primário com relação ao PIB, que chegou a ser de 3,4% em 2008, caiu para 2,2% em 2012, 1,7% em 2013 e, em 2014, transformou-se em um déficit primário de – 0,6%. Naquele ano, pela primeira vez desde 1997, o Brasil teve déficit primário! Queda de arrecadação devido ao menor ritmo de crescimento econômico, juros altos para tentar conter a inflação e, em um ano de uma acirrada disputa eleitoral, elevação de gastos, desonerações tributárias, e concessão de subsídios foram os principais responsáveis pelo estrago. Com um superávit primário menor, que se transformou em déficit primário, o déficit nominal cresceu, pois diminuíram os recursos para pagar os juros e correções e, consequentemente, a dívida bruta do governo também se elevou.
O déficit nominal saltou de – 2,3% do PIB em 2012 para – 6,0% em 2014 e a dívida bruta aumentou, no mesmo período, de 54,8% do PIB para 57,2% do PIB, superando tanto a média dos países emergentes quanto a média dos países de renda média que se situa em torno de 40% do PIB, de acordo com a OCDE. Em 2015 e 2016, esses indicadores fiscais continuaram a piorar. Déficit primário de, respectivamente, 1,9% e – 2,5% do PIB, dívida pública de 66,5% e 69,5% do PIB, e déficit nominal de 10,2% e 8,9% do PIB. Este foi o único indicador a apresentar discreta melhora, influenciada pela queda dos juros e a valorização cambial. Ainda assim, está bem acima da média de 4,7% dos países emergentes, segundo o FMI.
Diante desses números, desde a época do antigo ministro Levy, no governo da expresidente Dilma, as autoridades econômicas vêm prometendo voltar a produzir, em algum momento, superávits primários, de modo a derrubar o déficit nominal e a dívida bruta, afastando o risco de calote e permitindo, em médio prazo, a redução dos juros. Para isto, a terapia, de um modo geral, combina corte de despesas (como a já aprovada PEC dos gastos e a reforma da previdência em discussão) com aumento de receitas (principalmente de impostos, algo a ser proposto, creio, quando o ambiente político permitir e a popularidade do atual governo melhorar).
Idealmente, a busca por superávits primários deveria afetar igualmente o conjunto da sociedade, mas, efetivamente, penaliza mais fortemente setores da sociedade como menor capacidade de articulação política, que são, geralmente, os mais pobres e dependentes dos gastos públicos. A rigor, ele busca preservar os detentores de títulos do governo – agentes privados que seduzidos pela promessa de receber juros cederam suas poupanças para o governo – de modo a respeitar as relações de crédito e débito. Setores produtivos são também impactados, na medida em que corte de gastos públicos e redução de desonerações significam, respectivamente, menor demanda por bens e serviços e maiores custos de produção, assim como governadores e prefeitos que recebem menos verbas federais.
Por tudo isto, qualquer ajuste fiscal é detestado, mas diante da atual realidade brasileira ele segue uma lógica econômica e é tempestivo. Não se trata de uma imposição neoliberal. Medidas voluntaristas, irreais, pouco transparentes e populistas não são sustentáveis. Propostas de orçamento público baseadas em projeções de crescimento do PIB absolutamente inverossímeis acabam frustrando a projeção exagerada de receita e aceleram as despesas “por conta”. Os gastos governamentais, incluindo os sociais, precisam caber no PIB do país, na sua capacidade para gerar riqueza. Quando isso não ocorre, mais cedo ou mais tarde, diante do descompasso entre receita e despesa e da necessidade de honrar a dívida pública contraída, reformas fiscais costuma ocorrer, envolvendo a reversão de alguns benefícios sociais concedidos e/ou a elevação de impostos. É por alertar para esses aspectos que a economia é uma ciência triste. Isso não significa dizer que, como qualquer ajuste, ele não precise ser negociado politicamente, no parlamento e nas ruas, uma vez que ajustes fiscais nunca são neutros em termos de custos e benefícios.