* Autores: Economistas Oswaldo Guerra e André Garcez Ghirardi
A crise deflagrada pela greve dos caminhoneiros culminou no dia 1º de junho com o pedido de demissão de Pedro Parente da presidência da Petrobras, fazendo ruir a política de preços adotada pela companhia que permitia variações até diárias dos preços dos combustíveis. Durante esse período precipitou-se um acirrado debate em torno da política adotada pela Petrobras no governo Temer, e comparações com o que foi praticado nos governos Lula e Dilma. Partindo da premissa que não há decisão puramente técnica na indústria do petróleo, examinamos aqui algumas das causas e consequências das recentes políticas de preços de derivados no Brasil. Dentro desse contexto, fazemos uma consideração sobre o momento crítico enfrentado pela Refinaria Landulfo Alves em Mataripe (RLAM) no âmbito da estratégia de negócios da Petrobras. Para isso revisitamos decisões estratégicas do governo brasileiro na gestão da política de preços da Petrobras.
Há quase exatos dez anos, ocorreram dois fatos que mudaram estruturalmente o cenário da atividade econômica e que contribuíram para a atual conjuntura da Petrobras, da qual o declínio da RLAM é uma das consequências. Um fato se deu no plano nacional: a descoberta das jazidas de petróleo no pré-sal anunciada em novembro de 2007. Outro fato se deu no plano mundial: a crise financeira e econômica desencadeada pela estrondosa falência do banco de investimentos Lehman Brothers nos EUA em setembro de 2008.
Com a descoberta do pré-sal, o Brasil se transformou na principal fronteira de expansão da produção de petróleo convencional no hemisfério ocidental. O país passou a ser destino certo de investimento internacional em larga escala e a figurar entre os grandes possíveis supridores de petróleo para Europa, EUA e, destacadamente, China. As perspectivas de negócios para a Petrobras mudaram de patamar: a companhia, que se constituiu historicamente com a missão de garantir o suprimento do mercado brasileiro, passou a figurar como potencial exportadora de petróleo. Passou a ser vista como possível parceira de investimento de todas as grandes petroleiras internacionais, e a ser cortejada por representantes de governos de todo mundo, ávidos de participar da expansão de negócios que se afigurava como certa.
A crise financeira de 2008 teve efeito devastador e generalizado na economia mundial. Ao contrário de outras recentes crises centradas nas economias periféricas, a crise de 2008 teve seu epicentro nas economias centrais. Enquanto o valor agregado médio da economia mundial se retraiu em 0,1% em 2009, a retração nas economias centrais foi de 3,4%. Sinais de fragilidade estrutural e riscos de insolvência surgiram em praticamente todas as maiores instituições financeiras nos EUA e União Européia. O resultado mundial poderia ter sido ainda pior, não fosse o robusto crescimento de 9,2% do PIB chinês[1]. Apresentava-se, dessa forma, a ameaça concreta de um longo e profundo período recessivo, com inevitável contágio em todos os continentes, inclusive no Brasil. Por toda parte, analistas comparavam a violência da crise a um tsunami.
Esses dois acontecimentos encontraram o Brasil no início do segundo mandato Lula. Depois de um primeiro mandato marcado pela austeridade na política econômica, o Presidente estava publicamente comprometido com promover crescimento e a tornar mais favorável o ambiente de negócios. Diante das preocupações generalizadas com os efeitos destrutivos da crise mundial, Lula afirmou com audácia que, no Brasil, o tsunami da crise não passaria de marolinha, e que o país seguiria no caminho do crescimento.
Para seguir no rumo do crescimento, o Presidente contava com a Petrobras e todas as suas unidades, inclusive a RLAM, como peças centrais da estratégia econômica do governo brasileiro. A Petrobras iria expandir seu já ambicioso plano de investimento. O pré-sal abria uma imensa fronteira de exploração e produção. Novas refinarias seriam construídas, e as refinarias existentes passariam por obras de ampliação. A rede de transporte de gás natural seria expandida para integrar todo o mercado brasileiro, apoiada na construção de terminais de regaseificação que dariam estabilidade ao suprimento. Um amplo programa de construção de sondas, plataformas, e navios de apoio traria novo impulso à construção naval.
O orçamento de investimento da Petrobras disparou. Em 2007, a Petrobras já tinha apresentado um orçamento qüinqüenal de investimentos 67% maior que o de 2006. Tratava-se de um salto gigantesco para qualquer companhia. Mas, a expansão não parou por aí. Em 2008, primeiro orçamento após o anúncio do pré-sal, o valor foi a 112,4 bilhões de dólares. Em 2009-2013, com a inclusão das refinarias do Maranhão e Ceará, o orçamento deu outro salto espetacular de 55%, chegando a 174 bilhões de dólares. Em 2010-2014, lastreado no aumento de capital da companhia, o investimento previsto foi a 224 bilhões. Finalmente, no plano 2012-16 o investimento proposto atingiria o montante de 236 bilhões de dólares. Nos termos dos planos de negócios, o monumental investimento seria custeado pela própria geração de caixa da companhia e, em menor parte, com endividamento adicional. A execução financeira dos planos estava apoiada em dois compromissos fundamentais. Primeiro, o necessário recurso de caixa da companhia seria gerado com a venda de combustíveis a preços de mercado internacional. Segundo, o endividamento (a alavancagem) da Petrobras permaneceria confortavelmente entre 20% e 30%, e não ultrapassaria os 35% em nenhum cenário.
Até a conclusão do segundo mandato Lula, a estratégia econômica parecia avançar conforme esperado. Após a contração de 2009, a economia cresceu 7,5% em 2010. Por outro lado, contrariando a expectativa do Presidente, o país começou a sentir mais claramente os efeitos da crise mundial, notadamente através da desvalorização do câmbio que se traduziria em fortes pressões inflacionárias na economia brasileira. A inflação anual (IPCA) de 4,3% em 2009, próxima do centro da meta (4,5%), acelerou fortemente em 2010 (5,9%) e atingiu o topo da meta (6,5%) em 2011, primeiro ano da gestão Dilma Rousseff.
A pressão inflacionária não cedeu, pelo contrário, foi fortalecida pela tenaz determinação do governo federal em reduzir a qualquer custo a taxa básica de juros. Dessa forma, o IPCA permaneceu próximo ao topo da meta em 2012, 2013 e 2014 (5,8%, 5,9%, 6,4%) e saiu definitivamente de controle em 2015 (10,7%). Diante da pressão inflacionária, a Petrobras se transformou no alvo preferencial de uma bizarra tentativa de controle de preços comandada pelo então Ministro da Fazenda a partir de 2011. A tentativa produziu resultados desastrosos em diversas atividades. No caso da Petrobras, o ambicioso plano de investimentos de 2012 dependia explicitamente da manutenção de preços dos combustíveis em paridade com preços externos. Na prática, os preços ficaram muito longe disso.
Confundindo tragicamente as atribuições do Ministro da Fazenda com as de Presidente do Conselho de Administração da Petrobras, o Governo Federal impôs à companhia um longo e severo castigo, reprimindo os preços domésticos dos combustíveis em níveis muito inferiores aos do mercado externo. Ao mesmo tempo, manteve a companhia obrigada (ainda que informalmente) a garantir abastecimento do mercado interno. A Petrobras era obrigada a vender combustíveis com prejuízo. Essa tática míope para conter artificialmente os preços produziu a progressiva asfixia financeira que, depois de quatro anos, levou a Petrobras às cordas. Fruto dessa insensatez, o segmento de Abastecimento contabilizou perdas gigantescas em série: 6 bilhões de dólares em 2011; 17 bilhões em 2012; 13 bilhões em 2013; e 24 bilhões em 2014, segundo os demonstrativos contábeis oficiais. Totalizando 60 bilhões de dólares ao longo de quatro anos. [2]
Ao impedir o necessário reajuste de preços durante tanto tempo, o Governo Federal privou a Petrobras de 40% do recurso próprio previsto para realizar o plano de investimentos aprovado pelo mesmo Governo Federal no Conselho da companhia. O imenso rombo na previsão de receita própria teve, evidentemente, que ser coberto com empréstimos adicionais, levando a alavancagem a 52% em março de 2015, muito acima do limite pactuado de 20% a 30%. Daí a crescente desconfiança dos investidores quanto à capacidade da companhia honrar seus compromissos financeiros.
É claro que estão previstas penalidades em caso de descumprimento do que foi acordado, isto é, se o acionista controlador (Estado) conduzir os negócios de forma lesiva ao interesse dos investidores. No caso dos acionistas, o julgamento dos eventuais conflitos se dá através da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e da Justiça, em processos tipicamente demorados. Já no caso dos detentores de títulos de dívida, o descumprimento de condições contratuais pode causar o vencimento imediato de parte ou mesmo de toda a dívida da companhia. Constitui-se numa ameaça à própria existência da companhia, na medida em que pode bloquear qualquer possibilidade de financiamento das atividades de negócio. No caso dos estrangeiros proprietários de títulos de dívida, essa ameaça tem o agravante de ser regida por leis e órgãos de controle também estrangeiros, isto é, fora do domínio do Estado brasileiro. O governo federal subestimou essas consequências.
A realidade dos fatos se impõe. Depois de ter estrangulado financeiramente e imposto pesados prejuízos à Petrobras por quatro anos, o governo federal viu-se obrigado a entregar a companhia a uma intervenção dos agentes financeiros, para evitar o cenário de catástrofe com o vencimento antecipado de dívidas. Cenário que se desenhou com o surto de endividamento da companhia, agravado pela enxurrada de denúncias de corrupção que retardou de março para maio de 2015 a apresentação dos demonstrativos contábeis auditados relativos a 2014, obrigando a companhia a negociar em posição frágil junto aos credores.
O início da intervenção financeira de emergência na gestão Dilma Rousseff foi resumido no plano de negócios da companhia, divulgado em 29 de junho de 2015. A ordem do dia foi enquadrar o endividamento nos limites “normais” de operação (35%) até 2020. Como de hábito, o plano supunha manter os preços dos combustíveis num valor que gerasse caixa para a companhia, que se comprometia (uma vez mais) a praticar preços equivalentes aos do mercado mundial. Mas isso já não bastava. Além de reduzir custos, a companhia, para fazer caixa rapidamente, se via também obrigada a acelerar a venda de ativos, tanto no exterior quanto no Brasil. Para atrair compradores, a Petrobras tem oferecido ativos bons, e a preços convidativos.
Voltemos agora a uma consequência para a realidade baiana. A RLAM é, desde sua primeira operação em 1956, um agente da maior importância para a atividade econômica no Estado da Bahia. Ela teve um papel decisivo na construção do parque industrial baiano. Foi a partir dos produtos processados pela RLAM que se construiu o Pólo Petroquímico de Camaçari. Localizada no município de São Francisco do Conde, manufatura 31 produtos, destacando-se gasolina, diesel, querosene de aviação, gás de cozinha, lubrificantes, parafina, asfalto e matérias-primas para a indústria petroquímica, especialmente, a nafta. Ela é a segunda maior refinaria da Petrobras, com uma capacidade produtiva de 323 mil barris/dia, atende a demanda estadual e nordestina e é um dos pilares da economia estadual. Sua produção provoca efeitos multiplicadores sobre vários segmentos, a exemplo de serviços e transportes, e é muito importante para a arrecadação tributária estadual. É natural, portanto, que cause grande apreensão a drástica redução no nível de atividade da RLAM, com impactos negativos sobre emprego e renda na Bahia. Segundo registros do Ministério de Minas e Energia, hoje a RLAM processa diariamente 190 mil barris de petróleo, isto é, pouco mais de 50% de sua capacidade instalada. É uma redução radical na atividade: há pouco mais de três anos a RLAM processava diariamente mais de 300 mil barris de petróleo, operando com mais de 90% de sua capacidade.
A desastrosa política de controle de preços dos derivados de petróleo acima descrita afetou não apenas o caixa da Petrobras, mas também a todos os municípios que sediam refinarias. São Francisco do Conde costumava estar entre os maiores PIB da Bahia. De acordo com os dados da Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia[3], no ranking dos dez maiores PIB da Bahia, o município, em 2010, ficou na quarta posição (com cerca de R$ 5,3 bilhões). A partir daí sucessivas quedas ocorreram. Em 2013, desapareceu desse ranking e seu PIB caiu para um valor próximo a R$ 1,3 bilhão, afetando, negativamente, a participação das atividades de refino no valor de transformação industrial do estado, o PIB industrial e o PIB baiano como um todo.
Essa forte queda do PIB deveu-se à elevação do consumo intermediário causado pelo aumento do preço do barril de petróleo em dólares. Naquele momento, a alta do petróleo cru não era repassada para os preços dos derivados. Somado a isso, a Petrobras teve que recorrer também ao mercado internacional para comprar nafta, necessária para o processamento das resinas petroquímicas que são produzidas pela indústria de transformação do estado. O resultado foi uma grande elevação no consumo intermediário, sem um correspondente aumento no valor bruto de produção, uma vez que os preços dos produtos transformados não eram majorados na mesma proporção dos custos de produção[4].
As posses de Michel Temer em 12/5/2016, após o impeachment de Dilma Rousseff, e de Pedro Parente na presidência da Petrobras em 31/5/2016, e a adoção de uma nova política de preços para o diesel e a gasolina em 14/10/2016, não removeram as dificuldades da RLAM e, por consequência, da indústria baiana. A participação estimada do refino de petróleo no Valor Bruto de Produção da Bahia, que representou 13,6% em 2006, nunca mais voltou àquele patamar. Ela despencou para apenas 9,7% em 2012 e 10,3% em 2016, último dado disponível[5].
Em 3/7/2017 foi feita uma revisão na nova política de preços[6]. Com essa revisão, a área técnica de marketing e comercialização da Petrobras passou a ter delegação para realizar ajustes nos preços, a qualquer momento, inclusive diariamente, desde que os reajustes acumulados por produto estejam, na média Brasil, dentro de uma faixa determinada (-7% a +7%). A maior frequência de ajustes nos preços ocorreu porque, segundo a Petrobras, os ajustes praticados desde outubro de 2016, mostravam-se insuficientes para acompanhar a crescente volatilidade da taxa de câmbio e das cotações de petróleo e derivados.
Sem a necessária visão retrospectiva, a razão para o desempenho fortemente negativo da RLAM poderia ser imputada exclusivamente à nova política de preços da Petrobras que privilegia a redução do endividamento. De fato, a nova política de preços estimulou as importações totais de derivados de petróleo. Entre 2016 e 2017 essas importações aumentaram 26%. O aumento da importação tem reduzido o volume de petróleo refinado no Brasil. No mesmo período, essa redução foi de 9,5%. No caso especifico da RLAM, a queda foi de 7%[7]. Ou seja, o aumento da importação reduz o volume de petróleo processado nas refinarias brasileiras.
Nada mais enganoso. É preciso ter claro que a RLAM e, por efeito direto, a economia baiana foram seriamente prejudicadas não apenas pela nova política de preços, mas também em razão da série de equívocos aqui relatados, incluindo a política de repressão de preços. Diante da atual situação financeira da Petrobras, a revitalização da primeira refinaria da companhia dificilmente virá dos cofres da estatal, cuja prioridade imediata é sanar sua situação financeira. Em comunicado divulgado em 27/04/2018, ela informou a pretensão de vender a empresas privadas 60% de sua participação nas refinarias da Bahia, Pernambuco (polo Nordeste), Paraná e Rio Grande do Sul (polo Sul), bem como todos os ativos de logística (dutos e terminais) operados pela Transpetro e integrados a essas refinarias.
Três lições ficam de tudo isto. Primeira, qualquer empreendimento comercial para ser sustentável tem que ser lucrativo. O controle de preços de combustíveis foi uma das ações mais desastradas perpetrada pelo controlador majoritário sobre a companhia. Segunda, não basta querer crescer. Há fatores tecnológicos e organizacionais que representam limites concretos para a “aceleração do crescimento” dos negócios. Ao ignorar essas realidades, o governo de Dilma Rousseff causou um prejuízo que vem sendo pago com a destruição de milhares de postos de trabalho e colocou em xeque o papel da Petrobras na indústria brasileira de petróleo. Terceira, é um erro olhar a decisão de preços de petróleo sem levar em conta a dimensão política, ao lado da consideração técnica. É sim possível ter uma política de preços que amorteça as flutuações do mercado internacional e, ao mesmo tempo, dê rentabilidade a Petrobras.
[1]Dados disponíveis em http://www.imf.org/en/Data
[2] Segundo o Relatório ao Mercado Financeiro do 4º trimestre de cada ano, convertidos ao dólar médio reportado para o período.
[3]PIB municipal, Bahia: 2002-2014. Salvador: SEI
[4]Ver a respeito Pessoti & Pessoti (2015). Tendências recentes e perspectivas para a economia baiana. Bahia Análise & Dados.
[5]Dados obtidos junto ao COREF/SEI.
[6]Ela é baseada em dois fatores: a paridade com o mercado internacional – também conhecido como PPI e que inclui custos como frete de navios, custos internos de transporte e taxas portuárias – mais uma margem praticada para remunerar riscos inerentes à operação, como, por exemplo, volatilidade da taxa de câmbio e dos preços sobre estadias em portos e lucro, além de tributos. A principal diferença em relação ao que ocorria antes da posse de Parente é o prazo para os ajustes em relação ao mercado internacional. A nova política previa avaliações para revisões de preços pelo menos uma vez por mês. É importante ressaltar que, como o valor desses combustíveis acompanhará a tendência do mercado internacional, poderá haver manutenção, redução ou aumento nos preços praticados nas refinarias.
[7] http://www.anp.gov.br/wwwanp/dados-estatisticos