Keynes não era keynesiano
O britânico John Maynard Keynes (1883-1946) é um dos titãs da história da economia. Para o historiador inglês Richard Davenport-Hines, contudo, isso é pouco para defini-lo. Com sua inteligência analítica, seu amor pela arte, sua habilidade social e sua capacidade para influir na política, ele foi um “homem universal”. Esse é o título da biografia que Davenport-Hines acaba de publicar: The Universal Man: The Seven Lives of John Maynard Keynes. O autor explorou os vastos arquivos pessoais de Keynes, depositados na Universidade de Cambridge, para explicar os motores de sua obra. E afirma que Keynes é maior que as interpretações correntes de seu pensamento. “Ele anteviu os equívocos que viriam e disse: ‘Chamo-me Keynes, mas não sou keynesiano’.”
Quase setenta anos depois de sua morte, Keynes ainda merece um papel central no pensamento econômico?
Sem sombra de dúvida. Houve um período, nos anos 80 e 90, em que se formou uma falsa imagem de Keynes como inimigo do capitalismo. Isso é um completo nonsense. Posso afirmar, pois li minuciosamente tudo o que ele escreveu, que Keynes dirigiu seus esforços para a melhora do capitalismo, não para a sua destruição ou “superação”. A crise de 2008 permitiu desfazer um pouco os equívocos e mostrou como os problemas que Keynes procurou abordar ainda são os problemas do nosso tempo. Porque aquela foi uma crise de excessos, de “exuberância irracional”, como disse o ex-presidente do banco central americano Alan Greenspan,e Keynes empenhou-se no sentido de salvar o sistema de seus paroxismos de instabilidade. Ele disse, no inicio do século passado, que a regulação financeira tinha um papel importante a desempenhar, e que a regulação global era mais necessária para a estabilidade do capitalismo do que qualquer mecanismo nacional. E tudo o que aconteceu em 2008 mostrou a importância dessa discussão. Keynes é um autor fundamental.
Keynes era um economista de esquerda?
Era um elitista que nutria uma admiração romântica pela aristocracia e por tudo o que o dinheiro podia oferecer. Sempre foi, na verdade, um antimarxista. Para ele, as ideias de O Capital eram rígidas e ultrapassadas. Nos anos 1930, dizia: “Como posso aceitar uma doutrina que se impõe como bíblia acima de qualquer critica, um livro de economia obsoleto sem nenhuma possibilidade de aplicação no mundo moderno?”. Suas visitas à União Soviética deixaram nele uma impressão desagradabilíssima. Keynes acreditava no individualismo, na competição, na liberdade, nas artes. Não na burocracia, no comunismo e na regulação excessiva da economia, ou de qualquer outro aspecto da vida.
Keynes era um intervencionista?
Ele acreditava nos benefícios da política econômica. Mas também dizia que ela deveria ser alterada a cada quinze ou vinte anos. Não achava que a política econômica poderia ser permanente, porque as circunstâncias mudam e as expectativas das pessoas também. Ele não acreditava em pensamento estático em nenhum aspecto. No fim da vida, dizia: “Eu me chamo Keynes, mas não sou keynesiano”. Tinha consciência de que estava em curso uma interpretação equivocada de seu pensamento. E, após sua morte, isso de fato aconteceu. Na Europa e nos Estados Unidos, atribuem a ele a paternidade das políticas de expansão do déficit público, algo a que Keynes se opunha de forma contundente. Ele era extremamente contra déficits de longo prazo. Dizia que governos podiam se permitir um pouco de déficit para combater uma crise pontual, em especial ao injetar dinheiro na economia para reduzir o desemprego. Pois ele acreditava que o desemprego era o grande mal, o grande inimigo do potencial humano. Então defendia déficits de curto prazo em situações emergenciais. Mas definitivamente era contrário a governos, empresas e famílias contraírem dividas que jamais conseguiriam pagar.
Keynes não foi só um teórico, ele se aproximou do poder. Keynes gostava de política?
Ele conviveu com políticos poderosos. Mas não se identificava com esse meio, não gostava do relacionamento com os políticos. Em muitas anotações e artigos, descreve-os como entediantes e intelectualmente desqualificados para o cargo que exerciam. Acima de tudo, achava a maior parte deles hipócrita e sem convicções reais, o que era muito incomodo para alguém que tinha uma paixão intelectual pela verdade. Curiosamente, Keynes conseguiu transitar num ambiente de hipocrisia sem se render a ela. Era de uma sinceridade implacável.
Como Keynes combinou as qualidades do acadêmico com as do homem de ação?
Eu diria que ele foi o arquétipo do intelectual público. Era sólido na teoria, mas também conseguia navegar com segurança entre os políticos e fazer com que suas ideias fossem implementadas. Muitos grandes economistas serviram de consultores a presidentes americanos e líderes europeus, mas nenhum teve papel semelhante ao que Keynes exerceu no período entre as Grandes Guerras. Ele liderou a delegação britânica na Conferência de Bretton Woods, em 1944, momento em que foram desenhados o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Vinha negociando e planejando a criação desses mecanismos globais desde o início da II Guerra, porque estava determinado a reduzir a instabilidade, as crises, o desemprego e os impostos coletados para financiar armas antes da eclosão do conflito. Para Keynes, muitas das razões que levaram a Europa de volta às trincheiras eram econômicas, não políticas. E ele acreditava que, ao desenhar as bases para um capitalismo menos instável, seria possível evitar uma nova guerra como aquela que arrasava o mundo. Foi a figura intelectual dominante de Bretton Woods. Mais tarde contava, com ironia, ter agido durante o encontro como economista, financista, político, jornalista, publicitário, advogado, funcionário do governo — e profeta. Keynes passou muito mal durante a conferência. Havia sido diagnosticado pouco tempo antes com um problema cardíaco irreversível e sofreu vários colapsos. Mesmo assim, conseguiu sair de lá com seus planos aprovados.
O que levou Keynes à economia?
Acho que houve dois motores: um certo sentimento de nostalgia e a crença na necessidade de viver uma vida plena. Keynes descrevia os anos que antecederam a I Guerra como um paraíso perdido para ele e para os europeus. Queria uma nova belle époque, um mundo de prosperidade, elegância, segurança e valorização das artes. Keynes amava a beleza e o prazer. E desejava que todos tivessem acesso a essas coisas, tanto assim que dedicou um tempo precioso a conseguir dinheiro para criar o Arts Council e financiar a Royal Opera House, a National Gallery e a Portrait Gallery.
O senhor está dizendo que o Tratado sobre a Moeda foi escrito para devolver o mundo à belle époque?
E mais ou menos isso se estamos falando das motivações profundas, da maneira como a obra de Keynes se relaciona com a sua história de vida e a sua personalidade. Keynes participou ativamente do grupo de Bloomsbury, formado por artistas e escritores como Virginia Woolf.
Qual foi a importância dessa convivência para Keynes?
Era um ambiente estimulante para ele, embora todos os artistas fossem menos inteligentes que Keynes. Eram criativos, não intelectuais. Creio que um elemento-chave que Keynes exercitou com o grupo de Bloomsbury foi a arte de flertar. Ele sempre se achou feio. Para compensar isso, foi charmoso e cativante. Gostava muito de flertar com todos, não necessariamente no sentido sexual. Ele desenvolveu a capacidade de dominar as conversas como nenhuma outra pessoa naqueles tempos. Nunca foi arrogante. Só na velhice surgiu nele um traço de impaciência. Não suportava mais conversar com pessoas de mentalidade lenta, convencionais demais, que lançavam mão de clichês para justificar tudo.
Keynes foi bissexual. Acredita que isso também influenciou seu trabalho intelectual de alguma forma?
Sim, de duas maneiras. Ao buscar parceiros na juventude, Keynes circulou entre rapazes pobres. E ampliou sua experiência social. Ele teve consciência de como as pessoas viviam, algo que o jovem tradicional que saia da universidade e, em seguida, se casava não tinha. Há outra coisa talvez até mais importante. Ao fim dos 30 anos, ele se apaixonou pela bailarina russa Lydia Lopokova. Casou-se com ela mesmo que muitos amigos avaliassem a mudança como uma espécie de traição. Mas o casamento foi tremendamente bem-sucedido, em todos os sentidos. Ele foi muito feliz. E, pêlos relatos que se tem, foi a mudança sexual que o transformou intelectualmente. Quando se casou, sentiu-se livre para abandonar premissas da economia clássica que ainda constrangiam seu pensamento.